Até onde chegou a viragem à esquerda da América Latina?

Immanuel Wallerstein, 15/5/2008

Estamos diante tempos turbulentos politicamente, na América Latina e noutros lados. Mas a esquerda está numa posição muito mais forte para travar estas batalhas hoje na América Latina do que jamais esteve no último meio século.

Todos parecem concordar que a América Latina virou à esquerda no período pós 2000. Mas que quer isto dizer? Se olharmos para as eleições na América Latina, os partidos à esquerda do centro ganharam-nas em muitos países desde 2000 – Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Equador, Venezuela, Nicarágua, e mais recentemente Paraguai. Existem evidentemente importantes diferenças entre as situações nestes países. Alguns destes governos parecem muito perto do centro. Outros usam uma linguagem mais revolucionária. E há umas poucas excepções – Colômbia, Peru e México (apesar de no México o governo conservador ter ganho as últimas eleições com quase o mesmo grau de legitimidade com que Bush ganhou as eleições de 2000 nos Estados Unidos). A grande questão não é que a América Latina tenha virado à esquerda, mas até onde chegou essa viragem à esquerda

Na minha opinião, há quatro diferentes tipos de factos que se podem adiantar para dizer que a Améria Latina virou à esquerda. O primeiro é que todos estes governos procuraram, de uma forma ou de outra, distanciar-se dos Estados Unidos em diferentes graus. A administração Bush teria preferido em todos estes casos que os seus adversários eleitorais tivessem vencido. No passado, quando governos inamistosos chegaram ao poder na América Latina, a tendência dos Estados Unidos foi trabalhar para conseguir a sua substituição, ou mesmo o seu derrube. Mas o declínio do poder dos Estados Unidos no sistema-mundo, e em particular a preocupação dos Estados Unidos com as guerras que andaram a perder no Médio Oriente, parecem tê-los exaurido da energia política necessária para condicionar decisivamente a América Latina, como antes faziam. O fracassado golpe contra Chávez em 2002 é uma boa prova disto.

Que distâncias tomaram estes governos entre eles e em relação aos Estados Unidos? Fizeram-no de várias maneiras. Em 2003, os Estados Unidos foram incapazes de persuadir os dois membros latino-americanos do Conselho de Segurança da ONU da época (Chile e México) a apoiar a resolução que pretendia legitimar a invasão americana ao Iraque. Na última eleição do Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), o candidato apoiado pelos EUA perdeu, coisa que nunca acontecera na história da OEA. E quando o único amigo seguro dos Estados Unidos da América Latina de hoje, a Colômbia, entrou este ano numa severa rixa com a Venezuela e o Equador, os outros estados latino-americanos alinharam-se de facto com o Equador e a Venezuela. O Equador está a rejeitar actualmente renovar a autorização para a permanência da base militar dos EUA no país.

O segundo tipo de factos que indicam uma tendência para a esquerda são o grande crescimento da importância dos movimentos indígenas em toda a América Latina – nomeadamente no México, no Equador, na Bolívia e na América Central. As populações indígenas da América Latina foram desde sempre os sectores mais oprimidos da população e na sua maior parte foram mantidas fora das estruturas políticas. Mas hoje temos um presidente índio na Bolívia, que representa uma verdadeira revolução social. A força destes movimentos na zona andina e nas áreas maias da América Central tornou-se um factor político de importância decisiva, e que veio para ficar.

O terceiro tipo de factos é a sobrevivência e mesmo o ressurgimento da Teologia da Libertação. O Vaticano tentou suprimir estes movimentos nos últimos três papados, com pelo menos o mesmo vigor que os Estados Unidos usaram contra os governos de esquerda nos anos 50 e 60. Silenciou teólogos e substituiu bispos simpáticos à Teologia da Libertação por outros manifestamente pouco amigáveis. Apesar disso, movimentos católicos inspirados pela Teologia da Libertação continuaram a florescer no Brasil. Os presidentes do Equador e do Paraguai emergiram dessa tradição. E a invasão de grupos evangélicos protestantes na América Latina pode estar a mudar a atitude do Vaticano para tornar-se mais tolerante com os teólogos da libertação, que pelo menos são católicos, e podem ajudar a estancar esta perda de fé em relação à igreja.

Finalmente, o Brasil tem vindo a aplicar um esforço razoavelmente bem-sucedido para se tornar líder de um bloco regional sul-americano. Isto pode não parecer, em si mesmo, um movimento para a esquerda. Mas no contexto de um processo mundial de multipolarização, o estabelecimento destas zonas regionais enfraquece o poder não só dos Estados Unidos mas de todo o Norte em termos de relações Norte-Sul. A liderança brasileira dos chamados países do G-20 tem sido um factor decisivo para a extirpação da capacidade da Organização Mundial do Comércio para implementar a agenda neoliberal.

Em que resulta tudo isto? Certamente não numa “revolução”, no sentido tradicional do termo. O que quer dizer é que o ponto de intersecção da política latino-americana, o lugar geométrico do “centro” moveu-se consideravelmente para a esquerda, em relação a uma década atrás. Isto tem de ser posto no contexto de um movimento mundial. Esta deslocação para a esquerda também está em curso no Médio Oriente e na Ásia oriental. Também está a ocorrer nos Estados Unidos. O impacto da recessão económica mundial, que em breve se tornará provavelmente ainda mais severa, irá sem dúvida empurrar estas tendências ainda mais longe.

Não haverá reacções da direita que empreguem a força? Sem dúvida que haverá. Na América Latina, vemo-las hoje na tentativa das regiões orientais da Bolívia, mais ricas e “mais brancas”, de obter a independência e afastar-se do domínio das populações indígenas maioritárias que finalmente conquistaram o poder do governo central. Estamos diante tempos turbulentos politicamente, na América Latina e noutros lados. Mas a esquerda está numa posição muito mais forte para travar estas batalhas hoje na América Latina do que jamais esteve no último meio século.

 

Tradução de Luis Leiria

Vía: esquerda.net

Partíllao!

Share on facebook
En Facebook
Share on twitter
En Twitter
Share on pinterest
En Pinterest
Share on whatsapp
Polo WhatsApp
Share on telegram
Ou polo Telegram
Share on email
Email

Deixa un comentario