Carballo 2020, Carvalho 2021

Em 2019, a Real Academia Galega decidiu, após mais de uma década de insistência do activismo de base reintegracionista deste país, celebrar o Dia das Letras Galegas 2020 em comemoração da figura de Carvalho Calero, escritor, académico e activista pelo país e pela língua ao longa de toda a vida. Mais de uma década em que se desconsiderou sistematicamente qualquer reconhecimento a um relevante escritor e a uma figura fortemente ligada à história recente da Galiza.

Participou no Seminário de Estudos Galegos, na elaboração do borrador do Estatuto e na fundação do Partido Galeguista, luitou contra o golpe fascista na frente da guerra; foi membro da RAG e chegou a ser catedrático de Língua e Literatura Galega. Foi também poeta e narrador, escreveu teatro e ensaio, e marcou avanços fundamentais no estudo da nossa língua e literatura com a sua Gramática elemental del gallego común e a sua Historia da literatura galega. Qual a sua mácula? Carvalho Calero abraçou contra o final da sua vida as teses reintegracionistas e, não contente com isso, desenvolveu-nas e defendeu-nas.

É evidente que dum tempo para aqui, e mais agora com a celebração das Letras para Carvalho, anda um espectro pela Galiza — o espectro do reintegracionismo.

As teses reintegracionistas sempre estivérom presentes nos debates ao redor da nossa língua. Durante a Ilustração, os padres Feijó e Sarmiento já apontariam à unidade linguística entre as falas galegas e portuguesas. No Rexurdimento, Manuel Murguía, fundador da Real Academia Galega, perguntaria-se por que não assumirmos a ortografia portuguesa quando é evidente a unidade “em origem, gramática e vocabulário”. No primeiro terço do XX, seriam Castelao, Vicente Viqueira ou Vilar-Ponte vozes que reconhecessem a unidade linguística com o português. O espectro, logo, leva a nos rondar por séculos.

Cabe perguntar-se por que estas posições sempre presentes na nossa história contemporânea são agora constantemente apagadas de qualquer relato ou, quando aparecem, insistentemente assinaladas como um tema secundário, como uma preocupação excêntrica. A chave, se calhar, podemos atopá-la na articulação do Estado Espanhol na “transição democrática”.

No tempo da pré-autonomia e a consolidação do novo regime no Estado Espanhol, foi formada uma comissão encarregada de elaborar umas normas unificadas para a língua galega para uso das instituições públicas. Que Carvalho Calero, catedrático de filologia galega, fosse escolhido para dirigir a comissão, não resultou surpreendente. Que a comissão apostasse por configurar umas normas de abrangência e tendência reintegracionista como se vinham artelhando desde os espaços de auto-organização nacional-popular durante a década de 70, resultou problemático.

Como noutros momentos da nossa história recente, a suposta autonomia do nosso povo viu-se limitada pela capacidade do Estado Espanhol e do seu projecto nacionalista de tolerar a diferença. A ideia do galego ser a mesma língua que o português, de ter uma alternativa rica, viva e dignificadora que escapasse do controlo cultural espanhol não era assumptível; ser aceite desde as instituições do Estado era simplesmente impossível.

As teses reintegracionistas sobardavam o marco controlado polo espanholismo. Reconheciam ao galego uma dimensão além das fronteiras do Estado e uma alternativa cultural, rompiam com a diglossia que situava o castelhano como língua de cultura última e exigiam uma dignificação do galego maior da tolerada pelo stablishment mesmo no presente. O reintegracionismo não só rachava com a ideia da “língua comum”, mas anulava-a ao se ampliar um mundo de possibilidades em que o castelhano deixaria de ser uma necessidade para o consumo cultural ou académico.

Com estas motivações de fundo, as normas do 80 fôrom desbotadas e mudadas no ano 82 graças ao conhecido como Decreto Figueira, que institucionalizaria as Normas Ortográficas e Morfolóxicas do Idioma Galego acordadas pela RAG e o Instituto da Lingua Galega, um instituto universitário que vinha defendendo posições anti-reintegracionistas conforme estas se generalizavam ao longo da década de 70.

Com a aprovação das NOMIG 82, que desligariam por completo a nossa língua das possibilidades de autonomia cultural da via reintegracionista, começa um período de negação e ocultação através das instituições académicas. Carvalho e as ideias que defende vão aos poucos desaparecendo do espaço público. Apenas no activismo de base, no tecido associativo nacional-popular deste país, é que o reintegracionismo fique, longe da espanholização institucional.

Nos últimos anos, o trabalho foi dando frutos e hoje semelha que o reconhecimento do reintegracionismo está cada vez mais perto. Contudo, não nos podemos deixar enganar, o reconhecimento vem da mão do amansamento do movimento reintegracionista. Não se está a voltar à configuração dum debate mas à aparição num relato, o relato institucional que apagou o reintegracionismo e o afastou de qualquer normalidade.

Nos espaços políticos, o reintegracionismo quer não existe, quer aparece para desprestigiá-lo como crença fundamentalista fora das estruturas ideológicas toleradas no Estado burguês-espanholista. Também nos espaços académicos o reintegracionismo quer não existe, quer aparece como excentricidade produto da ignorância e o auto-ódio; as posições históricas das nossas literatas ao redor da questione della lingua são apagadas e os seus textos, uniformizados para evitar qualquer grafia incómoda. Não em vão este ano é dedicado a Carballo [Carvalho] Calero. Entre parênteses rectos, porque é impossível ignorá-lo.

Aos poucos isto vai mudando, mas não podemos deixá-lo na boa vontade do institucionalismo autonomista. Por isto, junto com grande parte do tecido social deste país, defendemos a celebração de Carvalho Calero para o 2021, para evitarmos mais uma vez que o reintegracionismo fique apagado e ensombrado.

A situação socio-sanitária que estamos a viver impossibilita, também, podermos reconhecer a realidade reintegracionista com o potencial esperado no marco dum ano Carvalho Calero. Esta é a oportunidade de marcarmos um ponto de inflexão no debate, de fazer-nos valer e socializar as nossas posições como nunca antes e não podemos deixá-lo passar. Merecemo-nos um ano Carvalho Calero para o 2021.

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