Dia da Hispanidade 2022: Nada que celebrar

Expor o jardineiro

Não pensemos em Espanha em termos unicamente negativos. O poder nem só reprime, como se o poder fosse (só) essa grande bota que tripa as liberdades.

Pensemos no poder como um jardim, como aquilo que faz o jardim possível: o desenraizamento das más ervas, com certeza, mas também a poda, o endireitamento da postura das árvores, a identificação e separação das espécies, o alimento das formas de vida desejadas… O poder (também) produz, disciplina os corpos e as mentes através duma densíssima malha na qual ficam prendidos todos os nossos actos, pensamentos e paixões, até mesmo os mais quotidianos. É precisamente nisso que reside o seu funcionamento óptimo: em passar desapercebido, em confundir-se com os ritmos e as leis da natureza. O melhor jardim, poderíamos dizer, seria aquele em que nunca víssemos o jardineiro nem a sua arte.

Reconheçamos ao Estado Espanhol os seus méritos. Quando o 12 de outubro de 1492 a Coroa de Castela pujo pé nas terras americanas do além-mar, deu início ao que se calhar é o maior projeto de jardinagem humana jamais concebido. Era de espoliar o ouro e a prata que se tratava, certamente, na tentativa de aumentar a receita fiscal da monarquia. Havia também desejos de ganhar novos súbditos a taxar e maiores territórios a explorar, o qual ainda não nos eleva do simples economicismo. Mas os súbditos e os territórios, ao contrário dos metais preciosos ou a terra, não são achados livremente na natureza: são precisas instituições e aparelhos de poder que os produzam através de grandes esforços.

Da Califórnia ao Cabo Horn, passando pelo arquipélago das Filipinas (e, vários séculos depois, pelo Marrocos e a Guiné Equatorial), milhões de pessoas e centenares de povos fôrom transformados de tudo aquilo que uma vez fossem em súbditos do Império Hispânico, vendo-se progressivamente integrados numa trama cada vez mais densa de vice-reis, governações, urbanistas, topógrafos, escolas, serviços militares, juízes, sacerdotes e hospitais.

A transformação não foi instantânea. Demorou séculos e lentas aprendizagens. Os nativos de cada lugar devêrom tornar-se compreensíveis como parte duma mesma cultura e uma mesma hierarquia social que os acolhesse, mesmo se o lugar deles era o mais baixo na escala. Tivérom de aprender a língua do poder (o castelhano, mas também as leis, a doutrina católica, as novas normas morais, aqueles jeitos e maneiras exóticas do conquistador que acabaríam por adotar como próprias), a mudar a postura, a abandonar velhos hábitos, a procurar as vias da sobrevivência e de mobilidade, a fugir dos perigos dum enfrentamento demasiado aberto contra aquele novo cosmos erigido sobre os ossos dos seus devanceiros.

Galiza, 2022. Poderíamos conceber Espanha como aquilo que nunca nos permitiu ser quem realmente somos, mas deveríamos quiçá prestar mais atenção àquilo em que nos obriga a tornar-nos. A relação de submetimento nacional da Galiza pelo Estado Espanhol não é apenas uma questão económica (quantos kWh produzimos ao ano para alimentar Madrid, a quantos milhões de espólio ascendem as portagens das autoestradas, o dumping fiscal ou a drenagem demográfica crónica), mas de domínio cultural, legal, linguístico, científico, educativo…—uma relação de domínio político atinge, enfim, todos os âmbitos da nossa vida, na medida em que a vida humana é essencialmente uma vida política.

Não é só dinheiro e recursos que nos são roubados. Roubam-nos toda a vastidão de possibilidades históricas que se estendem frente a nós, com exceção daquelas que conduzam à progressiva assimilação do nosso país como um agregado de províncias espanholas e das nossas vidas como encarnações da boa espanholidade.

A “Fiesta Nacional de España”, celebrada cada 12 de outubro coa teimosia dos ciclos naturais, é mais uma dessas operações de disciplinamento, de normalização dum projeto ainda vivo de domínio imperialista. Sob a forma da celebração coletiva da própria existência, as paradas militares, as despregaduras de bandeiras e as saudações oficiais escondem festivamente uma ordem: que Espanha continue a existir, e que continue a existir dentro do mesmo caminho histórico aberto pelo projeto castelhano de domínio peninsular e, posteriormente, mundial.

A teimosia esconde, contudo, a própria fraqueza. É possível impugnar a ordem estabelecida e denunciar o nosso direito como povo à independência. É-lhes necessário representar a fantasmagoria da Espanha milenária para manterem em pé, mais um ano, as oligarquias que se lucram dos recursos e o trabalho das classes populares (das nossas, de todas as que puderem). É-nos imperativo, enfim, expor o jardineiro e todos os modos em que opera, furar sem descanso nos muros que nos contêm, reclamarmos tudo aquilo que alguma vez nos foi furtado.

Partíllao!

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