Do ninho da língua portuguesa

Carlos Quiroga

Especialmente galega é a raiz brasileira em termos de língua, mas essa memória pode estar apagada no futuro. Por isso, tomo para mim, galego, a obrigação e a honra de recordá-lo, para o futuro da arqueóloga, os vestígios que, hoje, ainda há na Galiza.

Prezada arqueóloga do futuro:

É difícil escapar à suspeita de esta carta ser mais para os presentes, para uns aos outros nos propormos um levantamento caprichoso do que temos em volta, compreendermo-nos mais, acreditarmos melhor que aquilo em que acreditamos vale a pena. E há ainda a suspeita de que, se alguém vier munido num dia longínquo de escafandro informático, pretendendo examinar de verdade o passado, preferirá escavar em bits mais desprevenidos. Mas, mesmo assim, acredito porque devo. E escrevo. Porque se escreve para guardar a identidade para uma espécie de filhos que se há de ter, e eu tenho uma identidade para salvar, sem sombra de metáfora, para quem vier aqui mergulhar, filho, filha (e mulher sabe ler mais e melhor), para arqueóloga futura que se lembre de voltar aqui para abrir garrafas puxadas com premeditação ao mar do tempo.

Venha, então, a arqueóloga e, quando localizar estes vestígios e explorar este quadrante, terá datado o material por referências várias. Mas desconfie da interpretação dos achados e da reconstituição correta desta civilização antiga. O quadrante é genericamente brasileiro, os contributos vários e todos para ele vertidos, mas este concreto tijolescrito que avalia é puramente galego – vértice de toda a brasilidade.

Trabalhando numa ciência auxiliar da História, por esta saberá a arqueóloga que especialmente galega é a raiz brasileira em termos de língua, mas essa memória pode estar apagada na datação dos vestígios que agora toma. Por isso, tomo para mim, galego, a obrigação e a honra de recordá-lo, nos alvores do século que está explorando, no limite de uma sobrevivência, pois neste espaço se alcança um tempo que pode apagar, para o futuro da arqueóloga, os vestígios que, hoje, ainda há na Galiza.

Por haver ainda hoje, levanto a voz e digo. Hoje e o presente é o único que agora me move a escrever em galego. Hoje e o poder ter aqui esta voz, ecoando no quadrante brasileiro da Carta Maior, é o modo de elevar também uma oração rogando por algum futuro para esta língua na Galiza. Oxalá a arqueóloga não precise mais saber porque sabe. Ao presente é infelizmente necessário. E mais algum pormenor que dar.

Acabo de regressar fisicamente do Brasil. Passei do calor tropical da Bahia ao frio nos dedos dos pés em Curitiba. A gente me tratou bem, durante dias, a gente percebia “um sotaque especial”, durante as palestras, a gente percebia, e percebia durante todo o tempo. Acabo de regressar do Brasil a Santiago de Compostela, na Galiza, e sinto os olhos mais grandes só por isso, por vir de ver esse imenso país. Porque a Galiza é fisicamente pequena, cabe bem na mão do Brasil, embora esteja hoje no punho da Espanha. Mas há um entendimento possível com o Brasil, um entendimento para a Galiza necessário (e até urgente), pois no perceber está a ligação, no entendimento a nossa preservação e, se ao Brasil sempre sobrou futuro, se à Galiza só sobra passado, o meu trabalho de escrever é tentar essa troca.

Venho de ver gente no Brasil de todas as cores, de todas as raças, morando nas suas cidades e no seu grande país algo desprevenidamente, algo provisoriamente, mesmo algo depredadoramente, como sentindo a falta de passado e à espera de que a passagem do tempo o fabrique e a eles naturalize. Passado medieval emprestaríamos nós para as bocas, tomassem para o Museu da Língua paulista e para as suas conversas ilustradas, e em troca guardassem eles apenas conhecimento de que existimos e emprestassem algo do seu sobrante futuro para a arqueóloga nos encontrar ainda vivos. Se não nos encontrar, não terá servido de muito a luta por que me bato, a escrita que agora procuro, a ponte dos olhos em que, com a vida toda, quero transportar do grande para o pequeno. O sonho de uma identidade salva que uns poucos ainda curtimos. Se isso não acontecer, fique ao menos alguma informação do estado do mundo nesta questão, seguramente menor entre outros dramas maiores.

A arqueóloga terá observado na História como foi inevitável e até tonificante o contato de culturas e línguas, porque elas levitavam no nosso tempo entre os nossos corpos expostos ao ar que respiramos, onde há vírus circulando, e a linguagem comportava-se muito como um vírus. Mas terá observado também como uns poucos desses vírus teriam alcançado um vigor feroz, causado doenças e mortes nos corpos pequenos. Talvez no tempo da arqueóloga exista já uma única língua global conseqüência disso. Um terço das línguas do planeta corre risco de extinção no momento em que escrevo, e cumpre ter um corpo grande e forte – como o do Brasil – para que entradas como as do inglês sejam tonificantes e não mortais. Talvez no tempo da arqueóloga o inglês seja já completamente língua planetária. Talvez se tenham preservado pela educação atmosferas menores, que tivessem coeexistido em simultâneo, porque a gente aprende mais de uma língua. Mas também pode que ao mesmo tempo toda a profecia do Fernando Pessoa se acabasse por verificar, o inglês língua universal, sim, para a materialidade, mas o português língua universal… para a espiritualidade!

A Galiza não sabe o que é o Quinto Império pessoano, mas no seu corpo pequeno alguns de nós guardamos a memória destas utopias grandes, não por imperialismo, mas por necessidade de seguirmos vivos. De a Galiza seguir viva. A morte da língua não pareceu um risco nunca grave apesar dos séculos de dominação espanhola. Nem a Compostela de que escrevo, e que seguramente cabe toda no campus da USP paulista, e à qual chegaram línguas de todas as cores na boca de milhares de pessoas durante séculos, nem ela abalou na sua identidade por isso. Mas isso era antes do intenso ciclo atual de globalização, antes das facilidades de informação e comunicação proporcionadas pela tecnologia avançada, antes das forças internacionalistas que se contrapõem à preservação das diversidades culturais. Antes do sistema econômico-financeiro global que precisa da globalidade para se manter em expansão contínua.

A integração da Espanha à União Européia trouxe alguma conseqüência nefasta para a preservação da cultura galega, porque acelerou a radiação espanhola. Chegaram fundos estruturais e melhorou a qualidade de vida material, vias de comunicação, tecnologia, e como conseqüência maior presença do espanhol. A criação de uma euro-região, a eliminação da fronteira física com Portugal, parecia a grande oportunidade, pois Bruxelas dotou generosos programas comunitários Interreg para favorecer a aproximação cultural. Mas os milhões destinados a essa finalidade foram geridos durante anos na Galiza pelos governos da direita espanhola, que na realidade dificultaram o encontro. Recusaram o pedido de ensinar português nas escolas e ainda hoje não se pode ver na Galiza a televisão portuguesa do lado.

Se persiste a radiação do espanhol a esta velocidade, a identidade galega vai sumir. A única hipótese é que a radiação venha do Brasil, da lusofonia, da utopia. Por isso alguns teimamos em escrever o galego com a ortografia do português, aliás a própria. Reintegracionismo. O pouco contato que os meios espanhóis consentiram com a cultura em português permite aos jovens descobrirem que o galego nativo serve para ler e perceber de um modo que os “só espanhóis” não podem. No conglomerado cultural de um angolano ou de um brasileiro já existem elementos diferentes dos de um galego, mas a língua ainda permite o reconhecimento. Música, internet, descobrem uma utilidade que pode ser o motor de preservação da língua galega.

Na Galiza pequena, há uma cultura dominada, mas viva, nos alvores do século que a arqueóloga investiga. Perder a língua, como está sucedendo a muitas partes do planeta, não parece um drama terrível, e até há quem defenda que a homogeneização do idioma trabalha a favor da harmonia e eficiência globais. Mas eficaz é palavra para negócio, não para coração. O inglês pode dar conta do negócio, mas o negócio das pessoas passa por uma outra harmonia. Assim aconteceu durante séculos na pequena Galiza, em latido ainda harmônico com outras partes do mundo grande, mesmo que a maioria dos galegos desconheçam. Vértice do Brasil, vértice talvez da mesma arqueóloga, se ela já souber no seu tempo, significará que a utopia acordou.

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Carlos Quiroga foi director da Revista Galega de Criaçom O Mono da Tinta (1987-1991) e Professor de Língua e Literatura Galegas no Ensino Secundário. Foi também Chefe do primeiro Departamento de Português em E.O.I. (Escola de Línguas) na Galiza. Foi Bolseiro de investigação da Fundação Calouste Gulbenkian (1991-1992), bolseiro do ICALP, atual Instituto Camões (1992-1993), e prêmio extraordinário de doutoramento. Atualmente é professor titular de literaturas lusófonas na Universidade de Santiago e Diretor do Conselho de Redação da Revista Agália.

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