Espanha: elo entre o imperialismo mundialisado e a América Latina?

Por Rémy Herrera*

Os nossos leitores são quotidianamente sujeitos ao bombardeamento de propaganda mediática visando, entre outros mas muito especialmente, os avanços revolucionários da América Latina. Na Europa, no entanto, são sem dúvida os média dominantes espanhóis – incluindo os de «centro-esquerda» -, que se mostram mais aberta e violentamente hostis às forças progressistas latino-americanas. Para além da atenção «naturalmente» dispensada às antigas colónias, uma das explicações para esta agressividade deve-se a que, há muitos anos, as forças da reacção em Espanha estão na vanguarda dos ataques lançados contra estes avanços e movimentos populares do Sul, cuja característica dominante é terem passado à ofensiva num momento histórico em que, quase por todo o lado, de resto, a esquerda permanece na defensiva – quando ainda se manifesta.

Foi, com efeito, o governo do antigo Primeiro-ministro espanhol José Maria Aznar que apoiou com todas as forças, em 2002, o golpe de Estado neo-fascista contra o presidente Hugo Chávez Frias – golpe de Estado que gorado pela mobilização do povo venezuelano. Foi ainda este mesmo governo Aznar que, a partir de 2004, por uma série de manobras nem sempre tão católicas como as suas convicções profundas ou pelo menos tidas como tal, que envolveu a União Europeia numa lógica de sanções contra Cuba, quando a Justiça desse país mandou para a prisão os organizadores da «dissidência», provando o seu financiamento pelos Estados Unidos – ou seja, a potência que ameaça a ilha com a guerra, ocupa uma parte do seu território (a base de Guantánamo) e lhe impõe um bloqueio condenado pela quase totalidade dos países membros das Nações Unidas.

Nada de espantar na verdade, se nos lembrarmos que José María Aznar foi recrutado, formado, investido por altos dignitários do regime franquista – fascistas quimicamente puros -, como Manuel Fraga, ex-ministro de Franco e líder da Aliança Popular, depois Partido Popular em 1989 – além da Opus Dei. Aznar militava desde 1975 na Frente dos Estudantes sindicalistas, organização ultra-católica integrista. O Partido Popular, do qual Aznar foi eleito presidente em 1990 e que tolerou os neo-franquistas no seu seio até 1999, jamais condenou oficialmente os crimes do franquismo. Chefe do governo, Aznar fez subsidiar, por iniciativa do seu gabinete, a Fundação Franco que «trabalha para difundir o conhecimento humano, político e militar do Caudillo» e reabilitar a memória de figuras emblemáticas do regime apoiado por Hitler e Mussolini. Aznar deu cobertura às torturas policiais de militantes bascos e de imigrantes indocumentados, criminalizou movimentos sociais e censurou os média, conduzindo uma das políticas mais ultra-liberais e securitárias do mundo, submeteu o seu povo ao diktat de Washington quando este decidiu lançar a agressão contra o Iraque – e acessoriamente, concedeu a mais alta distinção civil espanhola ao seu amigo… Nicolas Sarkozy.

Não esqueçamos, também, que a «democracia» assenta em Espanha numa monarquia… reestabelecida por Franco, ele próprio imposto «pela graça de Deus»: o rei Juan Carlos I, ou Juan Carlos Alfonso Víctor María de Borbón y Borbón – dois Sicílias (!) para os íntimos, apesar de uma boa dose de sangue azul – descende em linha directa de sua majestade Luís XIV e é tetraneto da rainha Vitória, desculpem a modéstia -, não tem qualquer legitimidade procedente duma qualquer vontade popular. Não podemos sequer dizer que é o herdeiro «legítimo» da dinastia espanhola, já que o trono deveria ter ido para o seu pai, filho do rei Alfonso XIII exilado quando do advento da República em 1931, Don Juan de Borbón y de Battenberg – que fez valer os seus direitos à sucessão até Maio de 1977, ou seja até dois anos depois da designação do seu filho como soberano de Espanha. Foi Franco, em conflito com o pai, quem escolheu autoritariamente o filho, mais inclinado a colaborar com a ditadura. Juan Carlos, não só partilhava a função de chefe de Estado com o ditador moribundo, como ainda e jura em Novembro de 1975, perpetuar os princípios da ideologia franquista, o «Movimento nacional». A aprovação dócil das Cortes em 1978 e a integração formal da participação política da Coroa na Constituição, selando o voto de Franco, bastaram assim, como por encanto, para transformar uma abóbora ditatorial num coche democrático…

Quando da XVII Cimeira Ibero-latino-americana de Santiago do Chile, em Novembro passado, o mesmo Juan Carlos reservou ao presidente Chavez, que acabava de ser interrompido pelo novo chefe do governo espanhol, o (ainda?) «socialista» José Luis Rodriguez Zapatero, esta apóstrofe já célebre: «¿Por qué no te callas?» (o que é pouco menos grosseiro que o nosso «Cala a caixa!» nacional). Os presidentes democraticamente eleitos, Hugo Chávez Frias, Evo Morales, Rafael Correa, Daniel Ortega, em Estados soberanos, Venezuela, Bolívia, Equador e Nicarágua, tinham ousado fazer frente, apenas dois séculos após as suas independências, ao rei de Espanha! Esta «admoestação, inédita numa Cimeira deste nível» foi a ocasião para os media dominantes, em Espanha e fora dela, para denegrir Hugo Chávez, a Revolução Bolivariana e a resposta dos povos latino-americanos aos desastres mundializados do capitalismo. Pela distorção dos factos, estes médias conseguiram transformar a defesa da soberania nacional pelos presidentes dos países latino-americanos, num ataque da Venezuela contra a Espanha. O presidente colombiano Uribe -«o melhor amigo dos Estados Unidos», segundo George W. Bush- aproveitou mesmo para acusar Hugo Chávez de desígnios… «imperialistas» no continente!

Após um discurso do Presidente Evo Morales, que defendeu a legitimidade das nacionalizações dos recursos naturais levadas a cabo pelo seu governo, Zapatero -recentemente reeleito em Espanha – resolveu dar lições aos latino-americanos: defendeu as firmas transnacionais espanholas lançadas à reconquista da América latina, explicou ser conveniente de não dar muita importância aos «factores externos» e afirma que as ideias de democracia e de direitos do Homem vêm da Europa, esquecendo por um curto instante a sorte que os governos do «velho continente» – e o seu em particular – reservam actualmente aos migrantes vindos de África e doutras paragens… E acrescentou: «Até Karl Marx era europeu»! Boa oportunidade, para nós, de voltar a falar de democracia, no momento em que o tratado constitucional europeu acaba de ser aprovado pelo Congresso, contra a vontade do povo francês (já o terão esquecido?), que disse «não» à constitucionalização do neo-liberalismo na Europa, no referendo de 29 de Maio de 2005.

O rei perdeu a cabeça (apesar de ninguém ter a intenção de lha cortar) quando o seu ex-Primeiro-ministro Aznar foi tratado de… «fascista». José Luis Zapatero apressou-se, aliás, a defendê-lo, insistindo no facto de o seu predecessor «conservador» ter sido «eleito democraticamente pelo povo» … Hugo Chávez comenta o seu confronto com o rei por estas palavras: «Foi ele que perdeu a face. Não pôde controlar-se, e mandou-nos fechar a boca, como se ainda fossemos seus súbditos, no século XVII ou XVIII». Mas os média internacionais difundiram imagens, enganadoras, de um Juan Carlos mandando calar Hugo Chávez, e de seguida, retirando-se da Cimeira. Mas o rei apenas retirou a sua majestade mais tarde, quando o presidente nicaraguano Daniel Ortega interveio em apoio do presidente Chávez, defendendo a soberania do seu país e criticando os anteriores governos da Nicarágua que privatizaram empresas nacionais. Daniel Ortega afirmou que estes predecessores, tal como os líderes latino-americanos neo-liberais, detinham a responsabilidade de submeter os seus países à dominação das transnacionais do Norte e que entendia, junto com outros, mudar este tipo de relações. Lembrou que a Espanha faz parte da OTAN, que o governo espanhol havia autorizado no passado a utilização de uma das suas bases militares para o bombardeamento da Líbia, e que os povos latino-americanos estão longe de apreciar os comportamentos imperialistas das transnacionais espanholas no continente. Os ataques concentraram-se no sector da energia, cuja privatização na Nicarágua privou de electricidade uma boa parte do país, sem saber que o rei de Espanha é, ele próprio… accionista destas empresas! Foi neste preciso momento que Juan Carlos abandonou a Cimeira…

Este incidente insólito recorda-nos que a Espanha, e a fortiori os grandes países da União Europeia (e também a França), foram potências coloniais e desse facto guardam, talvez, certos traços de mentalidade, mas também que eles são ainda potências imperialistas, ou sub-imperialistas, porque submissas à hegemonia militar dos Estados Unidos, e que as suas firmas transnacionais se dedicam à pilhagem das riquezas dos povos do Sul. E neste dispositivo, a Espanha aparece hoje como um dos elos comerciais e financeiros essenciais entre o imperialismo mundializado e a América Latina. Em suma, não construiremos verdadeira democracia na Europa sem voltar costas, radicalmente, às praticas deste presente herdado dum passado que findou.

 

* Remy Herrera, amigo e colaborador de odiario.info, é Professor da Universidade de Paris1, Pantheon-Sorbone, França, membro do CNRS.

Tradução de Carlos Coutinho

Original tirado de odiario.info.

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