Eram as cinco da madrugada e Susana falava com Xan. Conheceram-se no bar e discutiam dum tema do que as duas gostavam. Apareceu o moço de Susana. Botou umha olhada ameaçante a Xan, abraçou a Susana e beijou-na. Xan deu-se por enterado e marchou.
No nosso imaginário a palavra violência connota sangue, feridas, golpes, berros. Quando as instituiçons desenham campanhas contra a violência machista na parelha todo som imagens de mulheres com o rosto marcado, corpos mortos, mais sangue, mais golpes, mais berros. Sabemos que se a nossa parelha nos agrede fisicamente, se ergue a mao contra nós, se nos bate, há umha agressom machista.
Mas o poder que se exerce desde a posiçom masculina na maior parte dos casos nom é tam evidente. Por isso é tam perigoso. Porque as violências que nom detectamos vam tecendo umha rede de submissom da que só chegamos a ser conscientes quando já estam tam bem feitos os nós que custa demasiado desfazer-se dela e voltar ser nós próprias.
Eram as três da tarde. Susana passava perante umha cafetaria com mesas na rua. Vestia umha saia. Vários homens lá sentados seguirom-na com a olhada, sem afastar um momento os olhos das suas pernas, do seu cú, dos seus peitos. Quando a tinham mais perto berrarom: “Ai, se te colho, morena…!”, “Com esas pernas estás para comer-te”.
Som as violências invisibilizadas, naturaliçadas, justificadas, as mais duras, porque batem incesantes desde que, sendo nena, és consciente do rol que se che asigna e começas a interiorizar a divisom entre comportamento bom e mau, entre o decente e o indecente, entre ser umha “buena chica” e ser umha zorra, entre as putas e as senhoras, as mulheres e as marimachos, as respectáveis e as qualquera.
Quando o moço de Susana irrumpiu no espaço autónomo dela e decidiu que a conversa com Xan já chegara ao seu fim, houve um acto violento, umha amputaçom terrível da capacidade de Susana de se autodeterminar, isso que se deu en chamar “micromachismo coercitivo”, polo que o homem ocupa um espaço que nom lhe corresponde, impondo o seu critério e anulando a vontade da mulher. Mas nom é o único exemplo. Colette Guillaumin, em “Sexo, raça e prática do poder” fala doutro micromachismo invisibilizado, o que ela chama “uso expansivo do espaço físico” e que exemplifica em comportamentos como acaparar o televisor para ver o que ele deseja ou dormir a sesta ocupando todo o sofá e impedindo um uso comum do mesmo.
Quando esse grupo de homens expresa a Susana os seus pensamentos sobre o corpo dela, nom é um “piropo”. A sensaçom de Susana antes de passar perante o bar, com esses homens expectantes, é de ansiedade. Sabe-se objecto nas mentes deles, sente-se vulnerável e mesmo chega a pensar que quiçá, parva ela, sabendo como é o bairro, nom devera ter posto umha saia tam curta. A invassom do espaço das mulheres é um acto de violência machista, seja desde as cadeiras dum bar ou seja nunha discoteca, quando perante as contínuas negativas seguem a insistir, tocando, acurtando a distância física. Isso é violência, violência real, palpável e diária.
Susana saia da Facultade todos os dias às 13.30h. E todos os dias agardava na porta Xan. Como ele trabalhava polas tardes, tambem agardava para estar com ela na Facultade nos descansos entre aulas. Quando tinha dia livre agardava polas tardes, quando ía a aulas de baile galego, acompanhava-a até a entrada e depois a recolhia. Polas noites Susana coidava umha criança e depois adoitava combinar com umha amiga para tomar algo. Malia que ela tinha carro, ele levava-a até ali e a recolhia.
Nas relaçons de parelha as violências ainda som mais naturalizadas e mais justificadas. Às vezes resulta complexo detectar a dissimetria de poder na própria relaçom, pois tendemos à autojustificaçom da nossa tolerância e do comportamento da outra pessoa. Às vezes custa-nos marcar a linha. Por exemplo, sentimo-nos mal por sairmos de festa com outras pessoas, e sabemos que nom devemos sentir-nos assim, mas lembramos que a última vez ele ficou “tirado” e isso “nom esta bem”. Sentimo-nos culpáveis por disfrutarmos longe da parelha, mas nom ré-pensamos os motivos por que identificamos esse sentir com algo “normal”.
Nós, mulheres conscientes, feministas, sabemos que os ciúmes nom som amor, som parte do ideário da possesom. Sabemos que a desqualificaçom dos nossos enfados com apelativos como “histeria”, “tolémia”, nom som opinions no marco dumha discusom; som a exteriorizaçom dum sentimento de dominio nessa relaçom de poder. Mas custa-nos marcar o limite entre passar grande parte do nosso tempo com alguem e perder a nossa autonomia. Custa-nos admitir que a pessoa com que compartilhamos muito exerce essa posiçom de dominio sobre nós e, aínda peor, está tam cómodo nela que nom é quem de reconhecê-la para mudá-la.
Susana ergueu a man na assembleia e deu a sua opiniom sobre um tema. Estavam a debater de feminismos e Susana, que nom adoitava sentir-se com a confiança abondo para falar, decidiu fazê-lo, questionando as atitudes pouco feministas que se costumam desenvolver nas organizaçons políticas. Após ela, intervinherom vários companheiros, desacreditando as suas posiçons com escasos argumentos, sentindo-se atacados e ofendidos.
As mulheres que militamos em organizaçons transformadoras sabemos que as contradicçons entre as posiçons feministas teóricas e a praxe diária existem e o realmente duro é reconhecê-las para começar o combate. Comecemos por combater o óbvio. Que as mulheres participam(os) “pouco”, falamos pouco, nos debates políticos? Pensemos na socializaçom. Pensemos na exigência social de obtençom da aprovaçom masculina. Pensemos no habitual que é a desautorizaçom das mulheres (muitas vezes com argumentos como “chegou aí porque é a moça desse companheiro”, “é umha tola”…). Pensemos nas atitudes paternalistas dos próprios companheiros de militancia (“nom actuas por ti própria, comerom-che a cabeça, deixa que che explique”). Pensemos na reclussom ao âmbito privado, arrastrada (e combatida) durante séculos. Pensemos que o espaço em que nos movemos, em que actuamos e em que militamos é um espaço masculino, e que é nesse espaço onde vivemos e no que supostamente temos que nos sentir cómodas, um espaço que existe para perpetuar a desigualdade de poder. Nós nom criamos estas regras, e o feito de que se nos valore pola nossa capacidade de adaptaçom a elas é mais umha violência simbólica.
Nom podemos escapar do patriarcado “individualmente”. Só podemos derrubá-lo entre todas, desde a consciência e a organizaçom. Só mudando esta estrutura social, rachando coa dissimetria de poder nas relacións, levando ao centro do debate político a luita feminista, poderemos rematar com a violências, micro e macro. O reconhecimento e a consciência som o primeiro passo para a emancipaçom.
Laura Arjonilla