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O sexo, o gênero e a sexualidade são construções sociais, e não realidades materiais. Isto é, em resumidas contas o que a teoria Queer afirma. Valente afirmação que a primeira vista pode semelhar errada. Não é acaso o nosso desejo pelo sexo oposto, o mesmo ou ambos, uma realidade objetiva? Não somos todos e todas homens ou mulheres? Não tenho eu um corpo sexuado que me define biologicamente como macho ou fêmea da espécie humana? A resposta apenas pode ser o não mais rotundo. A biologia não é uma ciência tão objetiva como queremos crer muitas vezes, e a nossa visão binarista e limitada do ser humano é produto da nossa cultura ocidental.
Se calhar, e fazendo um esforço, podemos chegar a ver como o gênero é uma realidade nascida dum sistema de opressão, chamado patriarcado, em que o homem domina a mulher, à vez que a principal arma deste sistema para manter dito domínio. Muitos movimentos feministas de tempos passados e presentes defenderam esta tese.
Podemos mesmo vislumbrar que o nosso desejo seja condicionado pela estrutura heteronormativa que rege as nossas vidas, essa que diz que o único desejo normal é a heterossexualidade com fins reprodutores. Contra dito sistema eleva a sua voz também o movimento LGTB clássico.
Porém, como conceber que o sexo, a realidade material e palpável, os nossos corpos em definitiva, sejam também construídos pela sociedade? Este vazio teórico vem encher precisamente a teoria Queer. Mas para entender o seu porquê, é preciso um pouco de história. É preciso falar de feminismo, porque sem ele não podemos compreender as origens da teoria Queer.
Tradicionalmente, o movimento feminista, desde as suas origens até bem entrado o século XX, vem apresentando duas tendências principais. Uma afirma que se bem os corpos de homens e mulheres são diferentes, não é a diferença sexual a causa do estado social diferenciado entre sexos opostos. Mais bem, é o gênero, entendido como uma serie de roles designados culturalmente a cada sexo, o piar fundamental da opressão da que a mulher é objeto no seio da sociedade patriarcal. Homens e mulheres são potencialmente iguais, mas devido à sociedade que habitam, têm papeis desiguais.
Outra corrente, conhecida como feminismo da diferença, afirma que homens e mulheres são naturalmente desiguais, mas que isso não deve ser impedimento para gozarem dos mesmos direitos.
Ambas estas análises ligam sexo, gênero e sexualidade, oferecendo apenas duas classes de indivíduos na sociedade: homens e mulheres, que se desejam reciprocamente.
Esta visão, na Europa, vai da mão do ideário cristão e da persecução que a Igreja católica levou a cabo, principalmente a partir do século XII, de toda conduta que saísse do marco heterossexual reprodutivo. Com tudo, a consolidação definitiva da família heteronormativa e falocêntrica como instituição vertebradora da nossa sociedade há que procurá-la ao abeiro da ascensão da burguesia e da sua moral entre os séculos XVIII e XIX. A aparição do estado burguês, centralizado e densamente interligado, propícia a erradicação por parte das elites de qualquer comportamento considerado como abjeto e perigoso para a sua ideologia, que consagra esses dois únicos modelos de ser humano.
Não obstante, protestos como o de Stonewall ou a enorme alarma social que espertou a pandemia da SIDA nos anos 80, criaram uma toma de consciência por parte daquelas pessoas que ficavam fora desses dois modelos. Novas vozes começaram a reclamar uma ótica diferente, questionando que a heterossexualidade fosse o desejo normal fronte a uma homossexualidade ou uma bissexualidade abjetas. Ao mesmo tempo, o movimento trans criticou que cada um dos sexos estivesse ligado apenas com uns determinados comportamentos. Por que um homem não podia pôr um vestido? Por que uma mulher não podia atuar de forma masculina?
Neste contexto nasce um feminismo lesbiano, que analisa a opressão que as lesbianas sofrem em tanto que mulheres e em tanto que indivíduos com um desejo não normativo. Uma das principais teóricas do movimento, Monique de Wittig, prepara as bases para a posterior aparição da teoria Queer, afirmando que as lesbianas não são mulheres. Posto que a ideia de mulher é um cárcere desenhado e imposto polo patriarcado a través da relação heterossexual, as lesbianas podem escapar dele, ao não fazer parte desse tipo de relações.
Finalmente, nos anos 80 e 90, em que toma força o pós-modernismo, toma força também a teoria Queer, sobre todo a partir do lançamento em 1990 do livro Problemas de gênero, de Judith Butler. A palavra “queer” em inglês original significa raro, estranho ou mesmo torto, e emprega-se como insulto cara aquelas pessoas que saem do cânone heteronormativo. Seria o equivalente galego de maricona ou marimacho.
Já que logo, este movimento apresenta-se como um repulso contra todas as identidades essencializadas e a norma que diz que vidas estão por riba doutras. Dá voz a aquelas pessoas que não entram sequer no modelo de gay perfeito vizinho ou lesbiana feminina. Procura desconstruir as categorias fixas e tirar o homem cis, branco, ocidental, heterossexual, de classe meia e sem diversidade funcional da sua posição de privilégio e universalidade. Isto traduz-se em que os sujeitos são agora plurais e já não cabem apenas nessas duas categorias monolíticas: homem e mulher. O binarismo é coisa do passado. O gênero não depende do sexo e, por tanto, este é também construção social.
Se pensamos no sexo, seguramente venham à nossa mente duas imagens opostas: um indivíduo com pene e outro com vagina. Porém, esta visão do sexo é mui reduzida.
O sexo não é só ter pene ou vagina; o sexo é uma configuração corporal determinada por diversos fatores: genitais, gônadas, caracteres sexuais secundários como o pelo corporal ou o tamanho dos quadris, hormonas e cromossomas. A forma em que estes elementos se combinam não sempre vai acorde com esses dois modelos definidos pela Biologia. De feito, o sexo mais bem é um contínuo que vai desde indivíduos com pene, testículos, abundante pelo corporal, altos níveis de testosterona e cromossomas XY, a indivíduos com vagina, ovários, cadeiras largas, abundância de estrógeno e cromossomas XX. É mais, grande parte das diferenças entre os corpos são produto da norma de gênero, que premia corpos masculinos com musculatura desenvolvida no ginásio e corpos femininos totalmente depilados à cera. O certo é que em grande medida, os nossos corpos são modelados pela sociedade em que estão imersos. De feito a teoria Queer critica fortemente, em dívida com as análises do poder realizadas polo filósofo francês Michael Foucault, até que ponto nós, as pessoas, somos criadas como sujeitos pelo poder.
Ademais, não todos os corpos têm pene ou vagina, nem cromossomas XX ou XY, o que faz questionar-nos ainda mais que só haja dois sexos: falo do I do acrônimo LGTBIQ, o coletivo interssexual, que se estima que representa por volta do 5% da povoação mundial, o mesmo que o da povoação de cabelo ruivo. Estes indivíduos têm características de ambos os sexos, com diferentes combinações possíveis. Podem apresentar, por exemplo, pene e vagina ou testículos e ovários ao mesmo tempo. Ademais, pode-se dar o caso de estes indivíduos não terem cromossomas XX ou XY, senão XXY, XXX ou muitas outras possibilidades.
O conflito está servido; como classificamos estas pessoas? O discurso médico apenas contempla duas categorias e não encaixam em nenhuma delas. A solução? O bisturi.
Quando nasce um bebé destas características, o corpo médico em seguida o detecta e prepara o material cirúrgico. Segundo os genitais sejam mais semelhantes a um pene ou uma vagina, o corpo médico decide por onde cortar e impõe uma identidade que esta criança deverá performar o resto da sua vida. Esta operação, que é totalmente desnecessária, já que se realiza sobre corpos totalmente sãs e funcionais, implica uns riscos imediatos, os naturalmente derivados de cortar, coser, e manipular uma zona tão sensível a uma idade tão tenra, e outros a longo prazo, pois é o primeiro passo dum longo processo que inclui fortes tratamentos hormonais e um férreo controlo sobre o gênero do indivíduo em questão. Esta operação tem lugar nalguns casos com total desconhecimento dos progenitores. Noutras dá-se-lhes uma informação muito reduzida e manipulada. Que prefere, um filho ou filha com uma vida sã e normal ou um monstro que não se sabe mui bem o que é e que de certo vai sofrer física e socialmente, sendo o alvo da discriminação? A decisão semelha doada.
Estes casos, que sucedem diariamente, servem como exemplo de até que ponto a ciência, a família, a administração e qualquer outra instituição de poder servem como ferramenta para produzir-nos como sujeitos de acordo a uma certa norma. Até que ponto somos quem somos pelo que a tecnologia produtora de verdade nos diz que somos. Em muitos destes casos de interssexuais que passam por um processo de imposição identitária, ao chegarem a certo ponto das suas vidas descobrem, duma forma ou outra, o que realmente sucedeu. Podem passar décadas até que um dia uma tomografia diga a um homem aparentemente normal que tem um útero. Imaginai a crise identitária e o sofrimento que causa saber que levas toda a tua vida vivendo uma mentira. E acaso não vivemos todas nós aqui pressentes uma mentira? Uma mentira articulado pelo homem cis, branco, ocidental, heterossexual, sem diversidade funcional e de classe meia, que nos diz o que somos e como devemos sê-lo.
Se não me equivoco, a estas alturas já entendeis algo melhor até que ponto o sexo é construção social. Claro que tendes um corpo material, tangível; claro que esse corpo tem uns genitais e umas características. Mas, onde levam esses corpos a palavra homem ou a palavra mulher gravada a ferro? Onde se especifica que os indivíduos com pene são homens e os indivíduos com vagina são mulheres? E que são então esses indivíduos interssexuais?
A teoria Queer desliga, como vemos, o sexo do gênero. O sexo é o corpo. O gênero é um conjunto de comportamentos, formas de falar, vestir, relacionar-nos com o nosso corpo, de sentir e de viver, entendidas dentro dum marco sociocultural e dum determinado momento histórico. Mas sobretudo, o gênero é uma identidade. O gênero não cabe dentro de duas únicas categorias, senão que é mais bem um contínuo de formas diferentes de experimentar a própria subjetividade. De feito, outras culturas contemplam mais de dois gêneros, como as hijra da Índia, ou os dois espíritos das culturas ameríndias. Neste último caso, são indivíduos que, independentemente da sua configuração corporal, adotam uma identidade e uns roles intermédios entre o masculino e o feminino, podendo ocupar importantes funções de certa autoridade no seio da comunidade.
Se bem não nos corresponde a nós tomar prestadas essas definições de culturas diferentes às nossas para aplicá-las na nossa própria existência, sim podemos decatar-nos de como o conceito de ser humano varia com as sociedades e o tempo, e de como se nos obriga a ajustar-nos a ele.
O gênero é um espectro, e por tanto inclui infinitas possibilidades. Há quem é mulher, há quem é homem, há quem é ambas as coisas ou algo intermédio; há quem não tem gênero e há quem os tem todos; há quem tem uma identidade estável e há quem tem uma que muda com o dia; há quem não se define e há quem tem as cousas muito claras. A complexidade da nossa existência não cabe em dou únicos moldes pré-fabricados que nem sequer temos opção de escolher. Somos o que somos e vivemos como vivemos porque ao nascermos alguém com uma bata branca disso “é neno” ou “é nena”, e porque a nossa família, a televisão, a escola, o governo, as canções, o mercado e a ciência repetiu um dia trás doutro “é neno”, “é neno”, “é neno”, ou “é nena”, “é nena”, “é nena”.
Para designar todas estas realidades que aparecem, surgiu com os anos um léxico novo e necessário. Nada mais que recolho um par de conceitos, os mais salientáveis.
Uma pessoa transgênero é aquela que não está conforme como o gênero que lhe foi assinado ao nascer, senão que é doutro distinto, dentro da ampla variedade de identidades existentes, como queergênero, agênero, pangênero, bigênero, etc.
Uma pessoa transsexual é aquela que modificou o sexo com o que nasceu.
Por contra, alguém cisgênero é quem está conforme com o gênero que lhe foi assinado ao nascer.
Alguém cissexual é quem não modificou o seu sexo de nascimento.
Vemos, por tanto, que nunca mais poderemos falar de sexo ou gênero contrários ou opostos, pois isso implicaria a existência de só dois sexos ou gêneros. E se há múltiplos sexos e gêneros, o mesmo sucede com a sexualidade. Fica obsoleta a triada heterossexual-homossexual-bissexual, que não abarca a multidão de possíveis relações erótico-afetivas.
A sexualidade é um fenômeno complexo. Devido ao nosso acervo cultural e à nossa sociedade patriarcal, solemos ver a sexualidade como um desejo sexual que se consuma no coito a través dum processo concebido desde um ponto de vista bélico. Com efeito, tradicionalmente falamos de “conquistas amorosas” e representamos as relações sexuais como uma relação de poder, com um sujeito ativo-dominante e um objeto passivo-dominado. Mas esta velha visão da sexualidade está dominada polo heterocentrismo, o coitocentrismo, e o alossexismo.
Heterocentrismo porque a relação heterossexual ainda é a considerada normal em muitos âmbitos da sociedade.
Coitocentrismo porque vemos a sexualidade apenas como o coito, o ato de inserir uma coisa dentro doutra.
Alossexismo porque pensamos a todo sujeito como desejante; não damos em imaginar sequer alguém que não tenha desejo sexual, isto é, que seja assexual. A assexualidade é um fenômeno real. As relações sexuais não são em absoluto uma necessidade básica de todo indivíduo.
A sexualidade inclui o desejo e a prática, tanto sexual como romântica; é um conjunto de processos erótico-afetivos que o sujeito experimenta. Faço uma clara distinção entre desejo e prática, pois uma coisa é querer estabelecer uma relação com umas classes determinadas de sujeitos, e outra bem distinta é levá-las a cabo. Distingo também entre o sexual e o romântico. A grandes traços, assim como o sexual é o que atinge o goze físico, o romântico atinge o emocional. De tal forma, uma mulher, por exemplo, pode ser heterossexual e manter relações sexuais heterossexuais, mas sentir-se atraída romanticamente pelas mulheres, sendo assim homorroromântica. O problema vem quando saímos do marco binário, essencializado, e observamos uma ampla multiplicidade de gêneros.
Por exemplo, um homem cis e um homem trans podem ter entre si uma relação homossexual, a pesar de ter um pene e o outro vagina. Ou uma mulher cis e um homem trans podem ter uma relação heterossexual, a pesar de ambos os indivíduos terem vagina.
Ademais, como nomeamos uma relação entre uma pessoa agênero e uma pangênero? Ou que nome recebe o desejo romântico duma mulher unicamente cara pessoas de gênero não binário?
Devo dizer que nem eu conheço todas as múltiplas combinações possíveis, nem daria tampouco tempo numa soa palestra para explicá-las todas em profundidade. Sou da opinião que as identidades são demasiado mutáveis e complexas como para reduzi-las a uma série de quatro ou cinco palavras. Somos, em grande medida, sujeitos que mudam com o tempo e que se vem influenciados pelos sistemas de opressão dos que fazem parte.
Porem, não renego da necessidade de termos um nome e uma identidade que sirvam como ferramenta para o autoconhecimento e como arma de luta política. Mas essa identidade não deve vir imposta pela sociedade, a cultura, a norma ou o poder. Somos nós apenas quem devemos decidir qual é a nossa postura. Somos nós apenas que devemos desconstruir-nos, conscientes de como forças externas tentam dar-nos forma, para reconstruir-nos logo, livremente.
Em resumo, isso é o que defende a teoría Queer. Longe de tudo essencialismo, proclama o direito à livre configuração do sujeito; a que todas as vidas sejam possíveis; a destruir a norma para criar uma nova mais plural e acolhedora na que todas podamos existir.
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Daniel Barral é militante de Isca! e do Movemento Galego ao Socialismo